quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O CAPITALISMO MEDICINAL

Hoje de manhã, um mulher com 30 e poucos anos, acompanhada do marido adentrou ao consultório a relatar cólica abdominal e náuseas. De repente, ela transcorreu um monólogo a afirmar que no passado teve furúnculo (sic) no olho (sic sic sic sic sic sic sic sic sic), no nariz (sic sic sic sic sic sic) e atrás da orelha (sic né). No entanto, atualmente, ela estava com um novo furúnculo: "Ali doutor, ali embaixo" - e apontou com o dedo indicador em direção à genitália. "Na vagina?" eu perguntei. "Não doutor, perto da parte anal"- disse a jovem mulher. Após algumas perguntas, chamei uma enfermeira para esta presenciar o exame físico. Em seguida, fechei a porta e ao colocar as luvas de procedimento a paciente me interrompeu: EU NÃO QUERO SER EXAMINADA, em tom profético.

Eu tentei convertê-la: "Mas eu precisaria te examinar, ver o tal furúnculo e saber se há necessidade de medicação ou mesmo procedimento". Ela insistiu: EU NÃO QUERO SER EXAMINADA, agora em tom agressivo. E continuou: EU JÁ SEI DO QUE SE TRATA, É FURÚNCULO, EU TENHO CERTEZA.


Match point. No mesmo instante, a frase proferida por mim foi: "Se você sabe o que é, então trate você".
Conclusão: Ela saiu da sala com o marido, o qual continuava em silêncio e disse que eu era muito estúpido...

Talvez eu tenha sido estúpido. Estupidez a minha não ter me calado. Mas até que ponto devemos "engolir sapos?". Por que médicos, enfermeiros e atendentes de hospitais devem sempre engolir sapos?? Devemos sempre chorar a seco?? Deixamos de ter sentimentos no momento em que vamos trabalhar ou no momento em que nos tornamos profissionais da saúde?? Que negação de saúde é essa??

A exigência social é soberba. Não somos andróides. Somos efêmeros debutantes de um pouco de conhecimento a mais. Não obstante reconhecermos que a relação médico-paciente deve ser sempre priorizada em direção à luz, ás vezes, a treva se sobressai e inundamos ou soterramos feito as enchentes no Rio de Janeiro. E nesse vendaval astronômico, ninguém quer o óbito, mesmo que simbólico.

No momento estou em São Bernardo, a olhar da varanda da sala várias luzes acesas das dezenas de edifícios presentes no meu campo visual e a pensar sobre o ocorrido no dia de hoje.


A lição que sedimento é a de que cabe a nós entender que quem necessita de assistência não somos nós. Não nesse caso. Afinal, são eles quem nos procuram. Claro, que um dia o papel se inverte e nós necessitaremos mais do que uma simples ajuda. Medicina não é comércio, mas vale a teoria da mais valia, ou seja, medicina é paradoxo obsoleto.

Enquanto permearmos nosso pensamento no sentido de que a relação doutor-paciente é divina e que mesmo eles agressivos, devemos ser toleráveis e engolirmos sapos, girinos e outros bichos, deixaremos os percalços diários dos atendimentos. Mas isso é a euforia de uma ilusão medicinal. NÃO DEVEMOS DEIXAR O EGO NOS ENVENENAR. Eis aqui o nosso erro. O erro é o ego. O que fere falsamente é o ego. Deve-se colocar o jaleco e retirar o ego. Sendo assim, qualquer flecha lançada nesse safari não fará sangrar nosso também frágil sistema circulatório. E algumas flechas contém curare. Cuidado.


E quando nada mais tiver jeito. Quando a estafa se faz presente e sua paciência foi passear no mundo de Pandora. Basta uma coisa apenas: espere o paciente sair da sala, feche e tranque a porta e GRITE, o mais alto possível. E se alguém ouvir? NÃO IMPORTA. Médico pode ser louco (de médico e louco, lembra?), o que não pode é médico responder a altura. Grite colega, grite.

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